Caros leitores amigos,
A postagem de hoje traz outra fábula. Vamos à ela.
"A marquesa de Sévigné (La Fontaine, nesta fábula, faz uma homenagem à beleza da marquesa de Sévigné, Marie de Rabutin-Chantal [1626-1696], escritora francesa cujas cartas são modelo do gênero epistolar [composição poética em forma de carta]) era de uma beleza rara. E estava tão acostumada a ser cortejada, que o fato de até um leão apaixonar-se por ela não era de estranhar.
No tempo em que os animais falavam, era comum que eles ambicionassem fazer parte do convívio humano. Afinal, tal qual os humanos, eles também tinham inteligência, força, coragem e até se comunicavam usando o mesmo código dos homens.
Foi nessa época que o leão apaixonou-se pela bela senhorita Sévigné e, sem demora, pediu-a em casamento.
O pai da jovem assustou-se. Ele queria para a filha um marido um pouco menos terrível, mas temia que uma recusa pudesse apressar um casamento clandestino. Com sua experiência, ele sabia que o fruto proibido tem sempre um paladar melhor.
Resolveu então aceitar a proposta do leão e disse a ele:
- Agrada-me a ideia de tê-lo como genro, mas preocupa-me o fato de que você machucará o corpo delicado de minha filha com suas garras, e, ao beijá-la, os seus dentes impedirão que ela lhe corresponda com prazer.
E o leão apaixonado permitiu que lhe cortassem as garras e lhe lixassem os dentes.
Sem garras e sem dentes, sua fortaleza foi destruída e um bando de cães o atacou, sem que ele conseguisse se defender.
Ah! A paixão! Feliz daquele que escapa dos seus ardis!"
Entre outras interpretações, Hammed indica inicialmente que esta fábula fala de dignidade - palavra derivada do latim "dignitas, atis" que quer dizer nobreza, merecimento, valor. Essa qualidade íntima da consciência do próprio valor, do apreço que se tem de si mesmo inspira a si e aos outros respeito, limite, estima e consideração.
A história do leão apaixonado ilustra o tema da paixão. Aquele que já esteve apaixonado (e isso inclui todo ser humano, excetuando-se as crianças em tenra idade...) sabe do que estou falando. Em termos psicológicos, quando um ser se apaixona, ele se apaixona por si mesmo, ou seja, pelas suas próprias características as quais ele desconhece. Ainda em termos de psicologia, ele projeta seu eu no objeto de desejo. Então, muitas vezes, ele se ilude quando julga as características de personalidade do ser amado. Em verdade, o outro que se apaixona por ele faz o mesmo. Então, enquanto o relacionamento caminha, essas projeções retornam aos donos originais. Nesse momento, todos conhecem a famosa afirmação: "Não foi com essa pessoa que me casei". Mas, nem tudo é negativo neste cenário. Muitos relacionamentos transformam-se em amor verdadeiro enquanto outros casais tendem a separar-se nesta fase.
Quando "garras e dentes" são cortados a fortaleza interna também está comprometida, pois se comete um erro crasso: entrega-se o controle da vida à outra criatura. Como resultado, perde-se o comando do próprio mundo afetuoso - porque quando não somos fiéis a nós mesmos, ao invés do relacionamento afetivo fortalecer-nos, fragilizar-nos-á. Quando o outro tem controle sobre nossa vida e nós o permitimos, abdicamos da nossa dignidade pessoal.
Naturalmente quando estamos envolvidos afetuosamente com outra pessoa enfrentamos nossos monstros internos que nos fazem sentir inseguros, fracos, incapazes de agir, expostos. Algumas pessoas, quando nessa condição, sentem-se limitadas a ponto de sentirem dificuldade de amadurecerem emocional, psicológica e espiritualmente. Neste momento podem até agir como vítimas. Hammed nos lembra sabiamente que as fragilidades são os pontos vulneráveis de nossa intimidade. Daí novamente a importância do autoconhecimento. Aquele que conhece suas fragilidades age de maneira diferente. E, quando ele ainda não conhece suas fragilidades, o ponto positivo desta circunstância é exatamente aprender a observá-las, analisá-las, transformá-las, adequá-las à situação vivida.
Hammed traz como exemplo, a crítica. Ele diz que se não soubermos lidar com ela, a julgaremos como algo negativo. Por outro lado, se, quando formos criticados, mantivermos a calma, analisarmos o ocorrido com imparcialidade, vendo o cenário à distância, "fora de nós", descobriremos, se quisermos, porque certos fatos se repetem em nossa vida. E então, a partir deste momento, a solução poderá ser encontrada porque fomos em busca da causa, não ficando presos aos efeitos.
Muitas pessoas acham que precisam anular-se para ser um ótimo objeto de amor. Quando fazem isso perdem o valor como pessoas, dissimulam a verdade, perdem a autenticidade e afirmam ser verdadeiro o que é falso. Muitas histórias de amor, filmes, livros, poemas afirmam que se deve fazer tudo pelo outro, do contrário ele pode abandonar-nos e é exatamente esse "perder-se na personalidade do outro" que faz com que um relacionamento afetivo desmorone. Aquele que perde sua própria dignidade num relacionamento tende a perder o objeto amado.
Quando a dignidade pessoal é colocada em segundo plano, a alegria de viver se esvai de nosso espírito. Num texto anterior falei do "cuidado com as criações de "scripts" que outros nos escrevem de como deveríamos nos comportar". Quando não fazemos uso de nosso poder pessoal, ou seja de nossa dignidade, sentimos um vazio existencial, onde uma onda de insatisfação invade nossa vida - quando valorizamo-nos na vida, os outros nos valorizam.
A façanha mais equivocada que uma pessoa possui é achar que pode resolver os conflitos dos seres amados, manter tudo na mais perfeita ordem, deixar todos felizes o tempo todo, no afã de ser querido. Essa postura vai de encontro ao bom senso e à razão.
Essas pessoas creem que se forem fiéis a si e às suas convicções e coerentes com aquilo que pensam e acreditam seriam abandonadas, rejeitadas pelas suas autenticidades e, finalmente desprezadas.
Muitos indivíduos ainda relutam em expressarem seus verdadeiros sentimentos afetivos. Então, perguntamos: "Qual o tipo de mensagem familiar que ainda ecoa em nossa casa mental?"
Aqui um alerta aos pais: existem crianças que são criticadas por serem honestas, quando contam algo negativo que fizeram e ouvem algo do tipo "Não quero ouvir nada de vergonhoso que você fez, do contrário o/a colocarei de castigo." Então, quando se tornam adultas, na maioria das vezes, têm relutância em dizer a verdade ou expressar seus sentimentos. A ideia não é oprimi-las, mas educá-las. E a educação demanda compreensão, diálogo e elucidação dos fatos reais do dia-a-dia.
Como toda escolha na vida pressupõe vantagens e desvantagens, a vantagem de não revelar o que há no nosso íntimo é a criação de um escudo protetor à nossa volta, impedindo-nos de sermos invadidos pelos outros, pois quando sabem de nossas características de personalidade podem repelir-nos, magoando-nos ou abandonando-nos.
A desvantagem encontra-se neste escudo protetor que nos impede de desfrutarmo-nos de relações saudáveis, sinceras e de mútua confiança.
O ideal não é construir essa barreira, mas realizar o autoconhecimento (novamente) como já foi dito, para conhecermos nossos limites. Quando não nos deixamos conhecer pelo outro verdadeiramente, podemos ficar vulneráveis a abusos, pouco caso, correndo o risco de viver isoladamente e evitando o mundo.
O caminho do meio para amar e ser amado, é não temer, é demonstrar ao outro o que se sente, como se pensa e age. Para termos relacionamentos gratificantes e agradáveis é preciso que nos sintamos bem, à vontade com nós mesmos. O melhor da vida é sermos respeitados e amados por aquilo que somos e não por aquilo que aparentamos ser.
Hammed fala de uma grande verdade: apesar da passagem do tempo, ainda vive-se de maneira caótica no ato de amar e ser amado, e que as dificuldades na área da afetividade continuam as mesmas.
Moral da História: A paixão e a prudência, na maioria das vezes, são incompatíveis. Na fábula foi demonstrado que quando o homem se priva daquilo que lhe traz a sua dignidade ou a sua valorização, ele torna-se presa frágil e fica exposto ao fracasso diante daqueles que outrora o respeitavam.
Boa reflexão e boa semana!
Autoconhecimento, autoamor, bom senso, a razão acima da emoção e humildade. Sem estes atributos, certamente a relação fracassará.
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