Caros leitores,
O texto de hoje é de autoria de J. Tucón.
" Como diria Jack o Estripador, vamos por partes:
1. Out of the Map (Fora do Mapa) é um filme muito interessante cuja história é a seguinte: Numa propriedade rural situada no Estado de New Mexico (USA), um fazendeiro é surpreendido pela visita de um fiscal do imposto de renda que vem indagar porque ele não entregou a referida declaração. E a resposta deixa o fiscal perplexo (sim, a palavra certa é perplexo): a declaração de renda não foi entregue porque não houve renda. A produção deu apenas para a subsistência do fazendeiro. Mas o fiscal não se faz de rogado e insiste que o fazendeiro deveria entregar uma declaração dizendo que nada havia a declarar. O filme continua. Como o fiscal se vê obrigado a passar a noite na fazenda, no dia seguinte ele começa a se interessar pelo modo de vida do fazendeiro, em contato com a terra e com a natureza, totalmente diferente de alguém que vai "cumprir uma missão" importantíssima: multar alguém que não declarou que nada tinha a declarar. A partir daí começam as descobertas e os questionamentos do fiscal a propósito de seu modo de vida.
2. Como sou "vidrado" no Novo México e abomino carimbadores e preenchedores de formulários é absolutamente desnecessário perguntar o que achei do filme.
3. Todos cometem erros e eu não fujo a regra, mas creio que meu maior erro foi não ter nascido em New Mexico. Conheço o local e foi aí que recebi uma inspiração para caminhos em minha existência.
4. Mas, vamos ao Brasil, Curitiba, bairro do Capão da Imbúia. Passei a morar no Capão em 2011. Situado na região leste, fazendo fronteira com a cidade de Pinhais, era "out of the map" muito embora bem servido pelo transporte público, dotado de um pequeno comércio bem variado que atende muito bem as necessidades do dia-a-dia, além de um posto de saúde com médicos excelentes. Comprei uma casa pequena situada num terreno grande o qual foi transformado num belo jardim. Bem perto da casa há uma reserva de mata nativa anexa a um museu de história natural. Construí um bom relacionamento com todos os vizinhos.
5. O bairro é horizontal, portanto bem ensolarado. Porém as ruas e calçadas não são bem conservadas. Por este motivo, um dia minha esposa fez a seguinte observação: será que a Prefeitura se esqueceu do nosso bairro? Para sua surpresa, respondi: "Tomara que nunca se lembre dele." Nesse instante passou pela minha mente a lembrança do filme do qual falei.
6. Tenho uma tia por afinidade que mora no Texas e ela costuma dizer: "Everything Government touches turns into shit", em outras palavras, o governo é um anti-Midas. Se o dos Estados Unidos que se mete muito pouco na vida do povo é assim, imagine o resto...
7. Os envergonhados:
- Um amigo nosso, um senhor de avançada idade sentia-se tão envergonhado de morar no Capão que, quando lhe perguntavam onde ficava sua casa, ele respondia baixinho, sussurrando de lado: "Capão da Imbúia"...
- Uma distinta dama, palestrante de um centro espírita do nosso bairro dizia que o centro ficava:"...ao lado do Jardim Botânico..." (outro bairro, não confundir com a reserva de mata do Capão).
8. É claro que há muito mais "envergonhados" e é a partir desses tipos que a "história mal contada começa". Qual é o sentimento deles? É "eu não mereço!" Mas não merece o quê? Não merece tomar café de coador e sim café de cápsula com propaganda feita pelo George Clooney. Então não vai a padaria tomar café de 2,50 reais e sim numa portinha travestida de modernidade politicamente correta tomar um troço com nomes italianos que custa 2,50 euros. É a turma que, como dizia minha avó "come banana e arrota peru". Só aparência e dívidas. É através destes que o bairro começa a "entrar no mapa" (big deal!) Preferi usar big deal do que a tradução.
9. A invasão dos aliens: eles são também os predadores. Como conseguem depredar e o que depredam? Bem, eles contam com aliados dentro do bairro. E quem são? São os envergonhados que sonham com um mundo desenhado pela propaganda e pelo marketing, comprar "sonhos" pois são incapazes de tê-los ou de formulá-los. Nada tem a declarar, só repetem slogans de publicidade. Repetem até aquela ladainha tipo "o progresso vai chegar ao bairro" e aí café de coador nunca mais!
10. Resultado da invasão progressiva: o bairro vai perdendo a sua espiritualidade. Sim, é isso mesmo! As arquiteturas cheias de histórias e sentimentos que criam o "clima" do bairro vão desaparecendo pouco a pouco e dando lugar aos "caixotes" impessoais que não vão além de uma obra de engenharia civil.
11. E assim, para a satisfação dos "envergonhados" eis que o "progresso" e o "desenvolvimento" chegam aí no bairro. Primeiro resolvem desmontar o terminal de ônibus e reconstruí-lo cem metros adiante (juro com a mão sobre a Bíblia!). Depois resolvem construir um tal de "binário" que consiste em alargar e retificar duas ruas paralelas e estipular mão única de tráfego para cada uma delas. E, para isso se abatem dezenas de árvores de grande porte que estão nas calçadas. Só na frente do posto de saúde foram três árvores. Belo exemplo! Uma das ruas que foi alargada é uma rua quase que exclusivamente residencial. E, para isso tem que deslocar as redes de esgoto, de águas pluviais e também os postes, além de abater árvores.
12. Quando começaram as obras eu perguntava para o farmacêutico: quem bombardeou: o Putin ou o Zelensky? Hoje eu digo: olha a Faixa de Gaza. E aí o farmacêutico, veterano do bairro, responde: eu prefiro a faixa de gaze.
13. E assim, o bairro se tornou "visível". E os "envergonhados" se sentem "dentro do radar", se sentem considerados, assistidos. E o que acho de tudo isto? Vou responder com as palavras de um velho amigo holandês que veio ao Brasil: "Bela bosta!"
14. A carência e a necessidade de uma parte da população em ser "vista" pelos outros como condição para existir é que abre espaço para daqui a um tempo retificarmos Descartes: passaremos de "penso, logo existo" para "sou visto, logo existo".
15. Quando sou visto, há grande chance de eu ser espionado ou controlado. O lance é que o controlador ou o espião vai oferecer a você uma "benesse" qualquer e aí os idiotas que são a maioria; sim, são os idiotas que compraram a ideia "filosófica" "Sou visto, logo existo", vão aceitar a benesse porque isto significa que foram vistos (ergo, existem). Mordem a isca e trocam o reino da liberdade por um prato de lentilhas. As lentilhas são apenas lentilhas mas para o imbecil elas significam a sua visibilidade e portanto sua existência.
16. J.P.Sartre dizia que o homem está irremediavelmente condenado a ser livre. E condenado a assumir a responsabilidade de suas escolhas. Assim, aqueles que escolheram trocar a liberdade pela visibilidade também o fizeram livremente. Absurdo? Sim. E daí?
17. Irremediavelmente condenado a ser livre. Mas, recusa-se a cumprir a sua sentença. Faz qualquer coisa para escapar. Mas não adianta. Ninguém vai resolver isso.
18. Quantos emojis, curtidas, inscritos no seu canal, likes, joinhas você precisa para se sentir o máximo? O máximo do idiota?
19. Gostou do texto? Não gostou? De minha parte, continuo pensando e existindo."
Boa reflexão pessoal e boa semana!
Pessoal. Para quem quiser localizar o filme nos canais de streaming, o nome correto do filme é "Off the Map".
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