Caros leitores,
Vamos à história:
"Um dia, Júpiter convocou todos os animais para comparecerem diante dele, a fim de que, comparando-se com os outros, cada animal reconhecesse o próprio defeito ou a própria limitação. Assim, Júpiter poderia corrigir as imperfeições
E os animais, um a um, elogiavam a si próprios, gabavam-se de suas qualidades e só relatavam os defeitos alheios. O macaco, ao ser questionado se estava feliz com seu aspecto, respondeu:
- Mas claro que sim! Cabeça, tronco e membros, eu os tenho perfeitos. Em mim, praticamente, não acho defeitos. É pena que nem todo o mundo seja assim... - Os ursos, por exemplo, que deselegantes!
O urso veio em seguida, mas não se queixou de seu aspecto físico, até se gabou de seu porte. Fez críticas aos elefantes; orelhas demasiadamente grandes; caudas insignificantes. Animais grandalhões, sem graça e beleza.
Já o elefante pensa o oposto e se acha encantador; porém, a natureza exagerou, para o seu gosto, quanto à gordura da baleia.
A formiga, ao falar da larva, franze o rosto:
- Que pequenez mais triste e feia!
Assim são os homens. É como se lhes tivessem colocado dois alforjes: no peito, o alforje com os males alheios, e nas costas, o alforje com os próprios males. De tal modo que eles são cegos quanto aos próprios defeitos, mas enxergam com nitidez os defeitos dos outros."
No dicionário Aurélio: Alforje: - duplo saco, ligado por uma faixa no meio (por onde se dobra), formando duas bolsas iguais; usado ao ombro ou no lombo dos animais, de forma que um lado fique oposto ao outro.
Psicologicamente falando, usa-se o termo transferência ou projeção quando evitamos entrar em contato com sensações, pensamentos, impulsos ou lembranças que nos causem desconforto.
Hammed colocou os dois termos como sinônimos e eles o são, realmente na conceituação das palavras, embora em termos psicológicos transferência seja mais comumente usada como um caso particular de projeção onde se descrevem os laços inconscientes e emocionais que surgem no analisando em relação ao analista. Então, no decorrer do texto usarei a palavra projeção.
O termo projeção foi usado primeiramente por Freud, depois foi usado por outros teóricos da psicologia, mas Jung descreveu-o através de exemplos do cotidiano de maneira mais ampla.
A projeção é o processo automático pelo qual os conteúdos de nosso próprio inconsciente são percebidos como se estivessem nos outros. Ele é um processo considerado automático porque todos tendemos a supor que o mundo é como nos o vemos e supomos também, de maneira ingênua, que as pessoas são aquilo que imaginamos que elas sejam. Por isso, projetamos em tudo que nos circunda (lugares, pessoas, objetos) todos os conteúdos do nosso inconsciente. Em primeira instância este é um fator positivo, pois facilita os relacionamentos interpessoais. Quando supomos que uma pessoa possua determinada característica ou qualidade e, depois de um tempo de convivência com ela, constatamos que a suposição inicial estava errada, ou seja, ela, na realidade, não possui tal característica ou qualidade, surge a oportunidade de aprendermos algo sobre nós mesmos. Este é o momento de retirar ou dissolver as projeções.
Antes de continuar nesta linha de raciocínio gostaria de lembrar que as projeções não são processos conscientes. Nós nos defrontamos com elas; elas não são criadas por nós. A razão para sua existência é sempre (para Jung) um inconsciente ativado em busca de expressão. Se a pessoa é consciente de si e do mundo não há necessidade de projeção. Mas não há neste mundo um único indivíduo totalmente consciente. Aquele que o fora, foi Jesus.
A projeção então surge como uma oportunidade de autoconhecimento. Com coragem, paciência, perseverança podemos conhecer nossas características e qualidades e transformá-las.
As projeções existirão enquanto o indivíduo usá-las como pontes agradáveis e convenientes para interagir com o mundo e dessa maneira, aliviarão o fardo da vida de modo positivo. Entretanto, assim que o indivíduo perceba a realidade, tanto de si como do outro, a projeção perde a sua função - ela deverá ser retirada ou até dissolvida. Do contrário atuará como um impedimento para o crescimento pessoal.
Uma das percepções da necessidade da retirada das projeções é a indicação de expectativas frustradas nos relacionamentos, acompanhadas de reações emocionais marcadas por sintomas físicos e distúrbios no pensamento. Mas, enquanto houver uma discordância óbvia entre aquilo que imaginamos ser verdade e a realidade que se nos apresenta, não há como retirar as projeções ou mesmo falar delas.
Um exemplo típico de projeção automática é o ato de apaixonar-se. Quanto menos conhecemos outra pessoa, mais fácil a projeção nela de nossos aspectos inconscientes.
Entretanto, a recusa de nosso mundo íntimo, a não aceitação de nossas características de como elas realmente são, a projeção de nossas ações e emoções nos outros, agindo como se elas não nos pertencessem pode-se tornar um hábito, um modo de vida. Todos conhecem indivíduos que colocam a culpa em tudo e todos, isentando-se da responsabilidade de seus próprios atos. Alguns destes indivíduos são amargos, outros são inconsequentes, outros despreocupados com o futuro, mas todos são inconscientes; possuem uma personalidade infantil, são imaturos.
Hammed discorre sobre um método para projetar nossa vida íntima em outra pessoa. Ele descreve duas etapas: a negação e o deslocamento.
A negação, como a palavra já o diz, consiste em negarmos certos sentimentos ou pensamentos, ou seja, não os aceitamos como sendo nossos; quando temos dificuldade de ver, de interagir com a realidade: quando nos recusamos a aceitar as coisas como elas são. Então deslocamos (deslocamento) nossos sentimentos e pensamentos para o mundo externo.
O deslocamento é um mecanismo psicológico de defesa onde a pessoa substitui, desloca a finalidade inicial de um impulso por outra diferente e que seja socialmente mais aceita e menos desastrosa. Por exemplo, numa discussão, o desejo de uma pessoa é o de agredir fisicamente a outra pessoa, mas acaba esbarrando "inadvertidamente" numa garrafa e esta se quebra no chão. O impulso inicial (e real) foi deslocado impetuosamente para a garrafa. Esse comportamento ocorre inconscientemente.
Outro tipo de deslocamento é quando uma ideia ou vivência é colocada simbolicamente na mente por outra ideia ou vivência onde as duas estejam emocionalmente associadas. Por exemplo: um indivíduo teve uma experiência de trabalho desagradável com um determinado chefe no passado e reage, no presente, com medo, desprezo ou aversão por todos os outros chefes futuros. Quando é consciente, o deslocamento, na maioria das vezes, não ocorre.
Vamos a outro exemplo: suponhamos que tivéssemos um desentendimento com uma pessoa no que diz respeito à divergência de opiniões em determinado assunto e por causa disso desenvolvêssemos certa antipatia por ela. Com o passar do tempo julgamos já ter superado esta fase e consideramos este episódio como passado. Entretanto, começamos a perceber que esta pessoa passou a ter uma antipatia e aversão por nós. Na realidade, o incidente não foi bem resolvido e projetamos inconscientemente esta emoção nesta pessoa, porque continuamos a ter sentimentos negativos em relação a ela. Esta é uma maneira de não aceitar nossas características negativas e projetá-las em outras pessoas. "Nós somos bons e perdoamos, mas os outros são maus, rancorosos e não perdoam."
"Assim são os homens. É como se lhes tivessem colocado dois alforjes: no peito, o alforje com os males alheios, e nas costas, o alforje com os próprios males: De tal modo que eles são cegos quanto aos próprios defeitos, mas enxergam com nitidez os defeitos dos outros."
Todos nós conhecemos indivíduos desta estirpe: atentam para o cisco no olho do vizinho, ao invés de se dedicarem a conscientizar-se de suas próprias fraquezas e por causa desta atitude aumentam a trave que lhes obnubila a visão de seu próprio mundo interno.
Quando mentimos conscientemente causamos menos danos para nosso crescimento pessoal do que quando mentimos para nós mesmos; as mentiras que projetamos são mais prejudiciais do que aquelas que verbalizamos.
Jung também se utilizou do termo Persona, termo usado no teatro grego que significava a máscara usada pelos atores para indicar o papel que desempenhavam. De início, a máscara serve como uma adaptação ao mundo externo e pode, como foi dito antes, ser uma conveniência pessoal. Em verdade, a civilização depende da interação entre as pessoas realizadas através da persona, pois apresentamos ao mundo exterior frequentemente, os aspectos ideais de nós mesmos para manter uma polidez e uma relativa harmonia.
Todavia, neste aspecto particular, onde buscamos a melhoria de nossas personalidades e uma maior conscientização de nossas vidas, não podemos nos utilizar de "máscaras", pois elas turvam nossa verdadeira realidade interior, fazendo com que vivamos ilusões, e adotemos um "papel" que não é verdadeiro.
Como vivemos em sociedade algumas regras de conduta devem ser seguidas para, como foi dito acima, manter uma harmonia relativa. Então quando nossas reinvindicações (exigências) internas não são admitidas (por nós mesmos ou pelos outros) ou quando são opostas àquelas que estão sendo solicitadas pelo mundo externo, inconscientemente projetamos e interpretamos papéis.
O processo todo se dá em nível inconsciente - projetamos e interpretamos "papéis" quando nossas exigências internas que, na maioria das vezes estão carregadas de emoções fortes, impulsivas e irracionais, entram em conflito com as regras e normas da sociedade. Então o processo passa da consciência para a inconsciência.
Será que realmente somos verdadeiros atores no palco da vida? Reflitamos sobre algumas situações da vida. Será que somos verdadeiros para nós mesmos quando nos colocamos diante de alguém como sendo mais do que somos? Quando nos mostramos alegres, quando na realidade estamos tristes? Quando escondemos e mantemos em segredo tudo o que mais queremos e desejamos? Quando fingimos um amor ou um desinteresse que não sentimos? Quando aparentamos uma frieza ou uma força que não temos? Ou até quando nos associamos a grupos de caráter social, político, religioso, cultural, recreativo, etc., para obter benesses que não merecemos, recebendo reconhecimento e elogios?
Para nossa evolução cultural, social, intelectual, espiritual há que se ter coerência, ou seja, o nosso eu, ou como chamou Jung, o nosso Self (Si mesmo) deve estar numa relação equilibrada entre o que sentimos e pensamos e o que vivemos.
Por que então falsificamos nossa realidade? Qual nosso ganho com essa atitude? Medo do que outros irão achar se formos nós mesmos? Frustração se descobrirmos coisas a nosso respeito de que não gostamos ou até não aprovamos? Respostas a essas perguntas não são fáceis de encontrar, entretanto saibamos agora de que quando distorcemos nossa realidade, danificamos nossa própria intimidade e vivemos toda uma vida com uma sensação de angústia de sermos uma fraude, com o agravante do receio de um dia descobrirem quem realmente somos. Tenhamos a coragem de tirar a máscara agora e encarar nossa vida com alegria.
Quando imbuídos da certeza de uma vida mais plena no futuro, caminhamos mais plenamente dentro de nosso autoconhecimento, tornamo-nos mais maduros social e espiritualmente para então iluminar não apenas as áreas externas de nossa vida, mas também as internas. Então, quando olhamos além dos olhos físicos, quando deixamos de ter uma visão parcial ou incompleta da vida, deixamos de projetar continuamente.
O ponto básico do problema da projeção está na compensação da falta de não termos consciência do que somos, do que queremos e por isso ansiamos ser ou possuir algo que não é real.
Termino com uma frase de La Rochefocauld: "Deploramos com facilidade os defeitos alheios, mas raramente nos servimos deles para corrigir os nossos."
Até semana que vem!
Muito interessante o deslocamento. Quanta sutileza escondida no comportamento humano.
ResponderExcluirO comportamento humano é realmente cheio de nuances. Ele se molda de acordo com a vontade consciente, entretanto para tornar o conteúdo consciente é preciso muito autoconhecimento, porque nossos atos e palavras na maioria das vezes segue o inconsciente.
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