Olá leitores,
Errata: Antes de entrar no texto de hoje, gostaria de me desculpar. Na postagem anterior, quando listei todos os textos do ano ficou faltando um texto: "O Destino do Herói" de 23.07.21, o qual versa sobre outra regra do novo livro de Jordan Peterson.
Então agora vamos à fábula de hoje.
"Uma gata mimosa, bela e delicada, era, para seu dono a coisa mais amada que havia neste mundo.
E o homem, desvairado e inconsequente, amava perdidamente essa gata além dos limites do que é normal. Um dia ergueu os braços para o céu e, em prece, implorando aos deuses auxílio, fez promessas, orações e magias. Tanto fez até que conseguiu dos deuses que aquele felino se transformasse em mulher: uma dama lindíssima, uma bela mulher, como convinha a todo homem.
Cego de amor, casou-se com ela. Homem apaixonado, marido carinhoso, ele a adulava, embevecido pela beleza daquela, cuja origem felina ele havia esquecido completamente. Para o homem, ela era uma mulher igual a todas as outras.
Numa noite, porém, alguns camundongos entraram no quarto conjugal. A mulher sentiu a presença deles e, seguindo seus instintos de gata, começou a caçá-los. Arqueada e ofegante, ela se atirou sobre os ratos, que escapam por um triz.
Ela não conseguiu da primeira vez, mas, na noite seguinte, com os sentidos mais aguçados pela experiência da véspera, assim que os camundongos apareceram, saltou do leito e, em posição felina, arremessou-se sobre eles e os apanhou.
Depois de conservar por muito tempo um licor, o vaso continua a guardar seu odor. Não perde o pano a antiga dobra, por mais que se tente esticá-lo: passado um tempo, ele a recobra.
O natural não sofre abalo quando escondido. Só descansa. Subitamente, entra na dança, e não há como refreá-lo, nem a bastão, espada ou lança. Fecha-se a porta com tramela, e ei-lo que sai pela janela."
Hammed interpreta essa fábula, tendo como simbolismo principal a vocação. Então, primeiramente, falemos sobre a vocação.
A palavra vocação vem do latim vocacio, que quer dizer chamado. No dicionário Aurélio, vocação é "1. Escolha, chamamento, predestinação; 2. Tendência, disposição, pendor; 3. Talento, aptidão.
Num artigo de "O Estado de São Paulo" publicado em 02.08.2003, o jurista, já falecido, Miguel Reale, afirma que existe a ideia de que "ao nascer, cada ser humano chega para exercer uma profissão determinada, para a qual estaria sendo chamado."
Assim podemos concluir que somos chamados a realizar determinada tarefa que nos auxiliará no nosso crescimento pessoal. Quando seguimos em direção a esta vocação sentimos certa facilidade e certo prazer decorrente desta facilidade. Entretanto muitos não a seguem como uma meta a ser alcançada e a utilizam como um hobby - então ainda sentem certa alegria na caminhada do dia-a-dia, mas há outros que nem ouvem esse chamado e são esses os que vivem suas vidas de maneira triste, mal humorados e tornam-se pessoas fracassadas e mal sucedidas.
Para Hammed é a "vocação que induz uma pessoa a escolher seu próprio caminho." Muitas vezes é graças à vocação que um indivíduo pode tornar-se um ser único, não se misturando às massas inconscientes nem se influenciando com o psiquismo delas. Cada um de nós possui vidas, personalidades diferentes - cada um de nós é um ser único com anseios, passados, características psicológicas e potenciais diferentes. Quando não nos conhecemos, não olhamos para dentro de nós mesmos, não ouvimos o chamado e não seguimos a vocação que se nos apresenta, temos dificuldade para crescer e quando o fazemos, há muito sofrimento envolvido.
Miguel Reale, no seu já citado artigo, também menciona fatores físicos que podem determinar a atividade profissional. No esporte, o mais alto pode tornar-se um bom jogador de basquete.
Lembro-me de uma história de um homem que vivia num vilarejo e que se sentia mal por ser pequeno e de baixa estatura. Certo dia, um menino havia caído dentro de um buraco e ele foi o único no vilarejo que pode entrar nesse buraco para retirar o menino, devido ao seu pequeno porte. Então, ele sentiu-se bem e aceitou sua condição física, porque viu e compreendeu nela um propósito.
Cada um de nós deve aceitar sua condição física do jeito que é; a compleição física pode apresentar certas características que auxiliam a pessoa numa tarefa a ser executada. Entretanto não se pode esquecer o livre arbítrio, a vontade e que em muitas circunstâncias há que se fazer ajuste no físico quando houver necessidade de viver uma vida mais plena - por exemplo, quando houver perigo de vida (obesidade mórbida, por exemplo).
Miguel Reale salienta também que "a vocação é um dom que exige preparo e educação." Ele afirma que "no mundo não se recebe nada de graça, sem estudo e dedicação."
Juntando os conceitos dos dois pensadores, podemos concluir que quando seguimos nossa vocação, ou ouvimos o seu chamado, temos que nos preparar, estudar com afinco, para depois nos dedicarmos a realizar tal tarefa. Uma coisa é o campo das ideias e outra é a ação propriamente dita. E, sem a ação não há realização e não há crescimento pessoal.
Para Hammed, a vocação é "uma manifestação inerente e comum a todos" - não é um privilégio somente de grandes celebridades ou personalidades. A vocação emerge, envolvendo todo o ser, trazendo à tona uma ideia principal ou um sentimento inato - é como "ouvir uma voz que nos é dirigida."
Toda essa reflexão a respeito da vocação encontra-se na expressão qüididade (no dicionário Aurélio: 1. A essência duma coisa; qualidade essencial; 2. O conjunto das condições que determinam um ser particular).
Hammed usa as expressões "é assim mesmo" e "as coisas são como são" para explicar qüididade, mas ela não tem a conotação de passividade, conformismo ou estagnação - mas designa a realidade essencial e natural das coisas.
Na filosofia, qüididade é "aquilo que faz com que a "coisa seja o que ela é"". Aristóteles em seus escritos usava a expressão "ousia": substância essencial.
Pode-se recorrer ao termo qüididade para dizer "o que é", "é natural que seja assim", "deve ser assim mesmo", quando alguém não se conforma com o modo de ser de uma pessoa ou de uma situação.
Muitas pessoas assemelham-se ao dono da gata da fábula - querem mudar a natureza das coisas e pessoas a qualquer preço - não compreendem que cada um entende a vida do jeito que a percebe, de acordo com sua personalidade, vive da maneira que quer ou que consegue e dá aquilo que possui dentro de si.
Quando se fala de disposições inatas, vocações e tendências pessoais, todos têm necessidades e características próprias de "ser como se é", "de estar onde e com quem desejar", tanto na vida pessoal quanto na social.
O progresso no Planeta Terra aconteceu e acontece desde que éramos "antropoides nus" até "especialistas vestidos". Nessa caminhada evolutiva a humanidade apreendeu um apanhado de ferramentas intelectuais e/ou emocionais, úteis e produtivas, onde foi possível todos trabalharem juntos e se complementarem unidos, facilitando assim nossa evolução como espécie humana. E, nessa jornada fomos adquirindo padrões naturais de conduta e desempenho, conhecidos hoje como vocações.
Hammed sugere que, com aquilo que foi explicitado até o presente momento, possamos buscar a verdade dentro de nós mesmos, criteriosamente, pois é este o local onde habita a fonte de sabedoria, que poderá nos trazer a paz com a nossa natureza e concomitantemente, a paz com a natureza dos outros. Neste quesito, uma sugestão aos pais - na educação dos filhos é importante estar de olhos, ouvidos, mente e coração abertos para trazer à tona a verdadeira natureza deles. A ideia é auxiliá-los a prestar atenção em suas tendências, disposições inatas, gostos e preferências e assim encontrar suas vocações.
Até aqui muita teoria, muito conhecimento no campo das ideias. E quanto à ação - importante para o crescimento pessoal? Como percebermos a vida em nós? Em textos anteriores falamos de quietude íntima, de reflexão, de meditação. Na maioria das vezes, olhamos para fora e raras vezes olhamos para dentro de nós mesmos. Já foi dito em inúmeras ocasiões que devemos olhar para nosso interior; mas que não podemos subestimar nosso exterior. É através da vivência, do contato com outras pessoas e situações que descobrimos características de nossa personalidade. Quando aquietamos nossos pensamentos, podemos observar essas situações com mais discernimento e entrar em contato com nossas tendências inatas. "Depois de conservar por muito tempo um licor, o vaso continua a guardar seu odor. Não perde o pano a antiga dobra, por mais que se tente esticá-lo: passado um tempo, ele a recobra."
Aqueles que têm uma espiritualidade/maturidade bem trabalhada, consciente, não ficam imaginando como as coisas deveriam ou poderiam ser. Eles sabem que, para certas coisas, todos somos impotentes, e acreditam nesta verdade, portanto vivem de acordo com ela. Essas pessoas sabem da possibilidade de aprimorar, aperfeiçoar a essência de algo ou alguém e, nunca alterá-la ou descaracterizá-la. Eles têm o conhecimento de que é possível lapidar o diamante, mas não mudar a sua propriedade íntima; é possível entalhar e cortar a madeira, mas não transformar a sua natureza orgânica; é possível esculpir o mármore, mas não modificar a sua estrutura interna.
Por este motivo, essas pessoas sábias não se lastimam ou reclamam quando algo não sai a contento ou quando alguém não preenche as suas expectativas - eles apenas conseguem discernir o que pode ser mudado e o que não está fora de suas possibilidades, distinguem o que é qüididativo e declaram "é assim, assim seja". Como eles sabem que as leis naturais regem o transcurso da vida, acompanham o fluir das modificações , intuitivamente deixam-se levar através do curso dos fatos e acontecimentos, sem tentar modificá-los de acordo com sua vontade.
Para não sermos corrompidos por devaneios, preconceitos, caprichos, obstinações e expectativas devemos perceber a Natureza (homem e coisas) em sua multiplicidade de seres diferentes, pois só assim atingiremos a verdadeira vida interior.
Cuidado com delírios alheios que possam nos induzir a uma maneira de viver que não condiz com nossos atributos naturais ou motivações internas; cuidado com criações de "scripts" que outros nos escrevem de como deveríamos ser, ou de como deveríamos nos comportar. Cada um de nós é um ser único em crescimento, com níveis diferentes de entendimento e, portanto, diferenças de comportamento.
Assim como na fábula, não há como transformar gatos em seres humanos - porque gatos sempre serão gatos e homens sempre serão homens - não há como anular nossa índole - propensão natural, característica inerente a todas as criaturas.
Atualmente a humanidade, com raras exceções, convive presa a regras "desnaturadas", ou seja, distanciada da condição "natural" a que foi chamada a viver.
"O que é inato, natural e instintivo não se elimina - equilibra-se". Essa afirmação de Hammed é muito verdadeira. Em nossa caminhada, quando estamos em meio ao processo de crescimento pessoal, na dominação de nossos impulsos, quando achamos que já os dominamos e quando tomamos todas as precauções possíveis para afastá-los e impedi-los de se manifestar, eis que eles surgem na primeira oportunidade favorável - haja vista o exemplo da gata/mulher que assim que aparecem os ratos sai à caça deles.
Boa reflexão e boa semana!
Até!