sábado, 23 de outubro de 2021

A COBRA E A LIMA

Caros amigos leitores,

Hoje trago outra fábula.  Vamos à ela.

"Conta-se que uma cobra vivia vizinha de uma relojoaria.  Um dia ela entrou na oficina atrás de alguma sobra, mas de comida, ali, nem cheiro.  Nada encontrando para satisfazer a sua fome e, com o apetite redobrado ao ver uma lima, se põe a roê-la.

A lima então lhe diz:

- Que pretendes fazer, pobre infeliz? Não vês que sou feita de aço?  E que, antes de me prejudicar, você está prejudicando a si mesma? Não percebes que não terás dentes para usar, e eu continuarei intacta, pois não conseguirás tirar do meu corpo o menor pedaço? A mim nada causa contratempo.  Os únicos dentes que podem me afetar são os dentes do tempo!

Esta história se endereça a vós que só sabeis criticar, nada mais.  A tudo e a todos mordeis, imprimindo a marca ultrajante de vossos dentes, mesmo sobre as obras-primas.

Será que podeis roer essas "limas"? Não se esqueçam: elas são de aço, bronze e diamante!"

Interessante o ponto no qual Hammed se baseou quando escolheu essa fábula de La Fontaine - ele se baseou nos valores eternos, aqueles em que a traça não rói - os valores espirituais - os únicos valores verdadeiros, universais de qualquer pessoa.  São os tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam,  que o evangelista Mateus descreve no capítulo 6, versículo 10 do Novo Testamento, da Bíblia.

A vida material realmente toma muito do  nosso tempo.  Há tanto para ser feito no afã da sobrevivência - trabalhar, comer, cuidar da higiene do lar e do corpo, adquirir bens de consumo, consumi-los, estudar para ter uma profissão, etc. - que a parte moral, espiritual é negligenciada.  Então como fazer para manter viva dentro de si a chama da vida espiritual?

Felizmente, a misericórdia divina oferece a todo o momento oportunidades a todas as criaturas para que elas percebam a grandeza da natureza e deste modo possam, ao admirá-la, refletir, pensar, sentir esta chama espiritual que brilha dentro delas ininterruptamente.  Com certeza aqueles mais sensíveis, "espiritualizados" por assim dizer, a percebem de imediato e procuram cultivá-la, pois sabem até mesmo intuitivamente que ela é o futuro, ou como dizia Jesus, quando se referia ao seu Evangelho, o caminho, a verdade e a vida. A esses, Hammed se referiu como homens fortes, de aço, não manipuláveis, com valores próprios - são como a lima da fábula.  Outras criaturas mais ligadas à matéria, ou podemos dizer materialistas, teriam mais dificuldade para percebê-la.  Estariam atentas para o lado oposto do futuro, do conforto, da verdade.  Estes seriam como a cobra da fábula - perecíveis, manipuláveis, buscando valores efêmeros.

Os tesouros no céu a que Mateus se referia são a posse dos dons da expressão, da criatividade, da compaixão, da liberdade, da lucidez, da alegria, da naturalidade, do desapego, da tolerância, da paz interna, e outros tantos valores universais.

Na fábula, a cobra tenta roer a lima, mas esta é praticamente indestrutível, pelo menos aos dentes da cobra - na vida de relações, muitos agem como a cobra, achando que podem "roer" (destruir, difamar) a vida de outrem, caluniando-os com falsas afirmações a seu respeito.  Como os valores definitivos são adquiridos por cada pessoa no viver do seu dia-a-dia, as "cobras sociais" como diz Hammed, não podem corrompê-los.

Muitos pais supervalorizam seus filhos dizendo a eles que eles podem tudo na vida (até "roer lima") e então quando estes atingem a idade adulta se acham superiores.  Assim, de modo inconsciente, em seus sentimentos, atos e atitudes eles recriminam a tudo e a todos, advindo daí aquilo que se chama "falso orgulho", pois ninguém é melhor ou pior do que o outro em sua totalidade.

Aquele que já adquiriu alguns valores morais universais sabe que não há como perverter pessoas ou criticá-las porque compreende que cada um dá do que tem dentro de si.

Muitos homens criticam porque querem ser aceitos e inadvertidamente, acabam permitindo que todos interfiram em sua vida.  Ou seja, assim como quem manipula é manipulado sem se dar conta disso, quem critica também é criticado.  O semelhante atrai o semelhante - lei de atração.  Usarei novamente uma fala de Jesus em Mateus 7, 1-2 que explica melhor essa afirmação: "Não julgueis para não serdes julgados; porque com o juízo que julgardes os outros, sereis julgados; e com a medida com que medirdes vos medirão também a vós."

Antes de continuar nesta linha de raciocínio gostaria de voltar a discorrer um pouco mais sobre aquele ser que se acha superior.  Ele julga, critica, censura, aumentando o seu próprio sofrimento, pois se acha absoluto e incomparável, pois, no fundo todo ser superior se sente inferior e acaba recriminando a todos para que a atenção seja voltada para ele mesmo.  Se ele conhecesse o tamanho de sua pessoa na realidade, talvez não necessitasse tanto ser maior e melhor que os outros.

Aquilo que popularmente é chamado de "Complexo de Superioridade" gera dentro do indivíduo uma sensação íntima de opostos extremos - às vezes se acha extremamente competente e outras vezes extremamente insuficiente, às vezes se acha extremamente habilidoso e outras vezes extremamente incapaz.  Então, esse indivíduo tem dificuldade de enfrentar a vida e seus problemas por causa das oscilações de comportamento.  Sente-se inadequado perante os outros, pois quanto mais se "eleva", mais se sente diminuído.  Dentro dele há uma total indefinição de quem ele realmente é.  Então como resolver tal dilema?  Buscando cultivar a humildade através de uma autoajuda; realizando uma autoanálise, e assim, buscando o autoconhecimento para colocar potenciais e defeitos nos seus devidos e reais lugares.  Porque é assim como dizem que "aqueles que não conhecem a História, tendem a repeti-la", aquele que não se conhece, tende a repetir os mesmos erros.

Quando censuramos alguém porque temos o dever de reprimir o mal, é louvável, pois se pode extirpá-lo da sociedade e ajudar na evolução da mesma.  Mas quando censuramos para difamar a pessoa, esta censura decorre da maledicência e da maldade.  Esta traz desequilíbrio tanto para o criticado, quanto para aquele que critica.

E aquele que é criticado?  Como deve agir? Calar-se.  A ideia é deixar que o silêncio envolva o maledicente para que ele possa ouvir as próprias palavras e perceba o equívoco e refaça seus atos, ou na pior das hipóteses para ele,  que ele seja envolvido pelo magnetismo negativo de suas próprias palavras.

Atualmente os indivíduos reúnem-se em "bandos", ou como diz Hammed, "rebanhos", porque têm medo da vida e do desconhecido e por causa deste medo recusam-se a conhecer o "desconhecido", formam uma "massa inconsciente" e assim refugiam-se naqueles que consideram seus semelhantes.  Então fazem tudo o que todos fazem, agrupam-se para criticar e se auto defender, julgando-se ameaçados por outros grupos.  Percebe-se que com a globalização atingiu-se o contrário do esperado - ao invés de nos tornarmos uma nação cósmica planetária, nos refugiamos em guetos, massas, tais como a massa de cientistas, de operários, de políticos, de religiosos, de filósofos... Por que há a necessidade de tanta proteção? Porque há o desconhecimento do que levam dentro de si.  Como disse no início do texto, a chama da espiritualidade encontra-se dentro de cada indivíduo e cada indivíduo possui uma realidade íntima particular e aquele que não vive de acordo com essa realidade íntima, vive a vida com medo, entregando as próprias rédeas da existência para outros, para os grupos.

Ao final da fábula, La Fontaine deixa um recadinho para aqueles que se acham o máximo: Esta história se endereça a vós que só sabeis criticar, nada mais.  A tudo e a todos mordeis, imprimindo a marca ultrajante de vossos dentes, mesmo sobre as obras-primas.

Não nos esqueçamos também que estas criaturas podem criticar por inveja e menosprezam os bens conquistados pelos que não são escravos da opinião pública; pelos que sabem distinguir aquilo que lhes é útil, lhes convém daquilo que não lhes serve.  Eles depreciam aqueles que dirigem seu comportamento conforme julgam correto porque desenvolveram o "senso crítico", o discernimento baseado na ética - propriedade esta, de uma individualidade universal.

O senso crítico é diferente do senso comum.  O senso comum é um conjunto de opiniões, entendimentos que cada um assentou dentro de si mesmo, tendo como base a herança cultural do meio em que vive e as experiências familiares.  O contexto social no qual o indivíduo vive dita as regras de vida como se estas fossem naturais e necessárias, mas onde não há reflexão, avaliação, questionamentos e ponderação de tais regras.  Na maioria dos casos, esse senso comum baseia-se em fontes de conhecimento que variam entre o não saber e a tradição, os preconceitos e até a ingenuidade.  Quando se age pelo senso comum, age-se de acordo com as ideias dominantes, mas nem sempre adequadas, e aos poderes preestabelecidos e não necessariamente estes estarem de acordo com a lei moral universal.  Podemos até dizer que aquele que obedece ao senso comum, age como uma "Maria vai com as outras".

O senso crítico é quase o oposto do senso comum.  Hammed nos esclarece dizendo que a palavra crítico é latina e vem de criticus, derivada do grego kritikós que quer dizer aquele que questiona sempre, que avalia, que decide, que julga.  Enquanto aquele que usa o senso comum é levado pela corrente de pensamentos e atos do convívio social, aquele que usa o senso crítico investiga criteriosamente atos ou opiniões, apresenta ideias em objeção a outras ideias, porque usa a reflexão, o questionamento, a contestação a fatos e conceitos.  Só é possível desenvolver o crivo da razão quando se aprende a arte de questionar.

O hábito de perguntar a nós mesmos se aquilo é adequado ou bom para nós, se é verdadeiro, se é melhor para nós de acordo com o entendimento que temos de nossa vida, deve fazer parte de nossa rotina do dia-a-dia.  Não se deve aceitar nada sem questionamentos.  Tudo deve passar pela nossa reflexão e pelo crivo da razão.  O senso crítico dá a nós consciência do adequado e do não adequado.

E assim chegamos à moral da história.  A crítica nociva faz parte dos indivíduos que não realizam nada de importante - não se arriscam a transformações e mudanças e não enfrentam desafios.

O crítico destrutivo fica estático, observando tudo o que os outros dizem, fazem e pensam, para depois criticá-los.  Ele é preso às normas sociais, submete-se ao senso comum, mas nunca usa o próprio senso crítico.

Aquele que tem senso crítico é lúcido e rompe com posições preconceituosas, pessoais e mal fundamentadas retiradas das crenças populares.

Aquele que faz uso do seu senso crítico sabe que as discordâncias são normais e saudáveis, uma vez que se apoiem em fatos concretos e não em suposições ou projeções de personalidades doentias.

Finalizo com a frase de La Rochefoucauld: "Somos muitas vezes mais maledicentes por vaidade do que por malícia."

Boa reflexão e boa semana! Até!










 

3 comentários:

  1. "Pois onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração."(Lc, 12,34). Assistimos o documentário O Dilema das Redes na Netflix. Excelente reflexão sobre o senso comum.

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    1. Grata pela dica. Vou assistir. Pelo nome e assunto já imaginava que era sobre o senso comum. Aliás, as redes sociais em sua maioria não praticam o senso crítico.

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