sábado, 27 de novembro de 2021

O GAIO E O PAVÃO

Caros amigos leitores,

Hoje postarei mais uma fábula.  Antes disso vamos a uma definição: Gaio: ave da família dos corvídeos do tamanho aproximado de uma pomba e de plumagem marrom-avermelhada, com asas e caudas negras.

"Um gaio apoderou das penas que um pavão trocara.  Colocou-as em seu corpo e acreditando ser uma bela ave, foi exibir-se entre os outros pavões.

Reconhecido, ei-lo enxotado a bicadas e empurrões violentos.  Depenado pelos pavões, ele foge entre vaia estrondosa, corrido, por ludibriar; leva o corpo em carne viva.

Buscando asilo e refúgio entre os gaios, seus iguais, foi repelido a assobios e gargalhadas.

Gaios bípedes eu conheço que não são imaginários; eles usurpam penas alheias e se chamam plagiários.

Mas, cala-te, boca! Não é do meu feitio apontar os impostores! Entre os pavões são notórios os gaios que se apoderam do que não lhes pertence."

No dicionário Aurélio, plágio é ato ou efeito de plagiar; plagiar é imitar obra alheia; assinar ou apresentar como seu, trabalho artístico ou científico de outrem.  Entretanto, na área da psicologia, plágio pode também ser interpretado como uma atitude íntima inconsciente.  Muitas vezes "querer ser ou parecer o outro", como diz Hammed, pode ser uma característica inconsciente de um indivíduo que tem dificuldade de se autoconhecer, ou até de se aceitar tal como é, então ele imita outros modelos que lhe parecem mais aprazíveis ou até aprovados como bons pelo meio social.

Muitas vezes esses tipos de atitudes são sutis, quase imperceptíveis, onde a intenção do indivíduo não é explícita - nem para ele nem para os que o rodeiam.

Na fábula, o gaio adorna-se com as penas do pavão, porque estas lhe parecem mais belas e as suas penas verdadeiras não têm graça, não chamam a atenção e ele, desta maneira, com as penas alheias, acredita valer mais, ter mais credibilidade e aceitação - mas quando o embuste é descoberto, ele não é aceito nem pelos pavões (é enxotado a bicadas e empurrões violentos), nem pelos gaios (foi repelido a assobios e gargalhadas).

Aquele que observa de longe pode achar que as "penas do pavão" são pura "fantasia", mas em muitas circunstâncias, é mais do que isso - é uma defesa do ego fraco que, temporariamente, preenche uma necessidade ilusória para desejos íntimos não efetivados.  O próprio inconsciente cria uma substituição para a satisfação que ele acredita para suprir a realidade, mas em verdade, apenas a mascara. Quanto mais inconsciente de si e do mundo, mais fácil  se torna criar esse mundo paralelo ilusório.

Quanto mais ele se conhece, menos necessidade de subterfúgios, mais rápido ele se livra de suas imperfeições, mais paz de espírito para si próprio em qualquer instante de sua vida.

Como sempre, todas as imperfeições que o homem possui têm como origem o orgulho e o egoísmo.  Nesta fábula, as coisas não são diferentes.  Podemos até perceber também aqui, a vaidade (com as plumas do pavão ele se sente mais bonito), a inveja (quer ser como o pavão, mas também não percebe que há desvantagens em ser pavão - arrastar as penas pesadas ao caminhar e estar sempre num galho mais alto para ter mais conforto, quando está contido num zoológico, por exemplo).  A ilusão dele também se encontra no fato de ele acreditar que todos gostam do pavão - nunca lhe passou pela cabeça que talvez muitos possam admirá-lo por sua plumagem marrom-avermelhada e suas asas e caudas negras.

Quando uma pessoa se veste com a personalidade de outra quer ocultar sua própria personalidade; talvez por não aceitá-la como foi dito anteriormente, ou até para alterar uma característica ou manter em segredo uma realidade que ele quer acobertar.

Apesar da globalização, ou até por causa dela, a humanidade tem deixado transparecer claramente seus preconceitos.  Quanto mais inconsciente um indivíduo, mais preconceituoso, com mais probabilidade de imitar atitudes alheias que são consideradas aceitas pelo meio social em que ele vive, com mais dificuldade de andar pelas suas próprias pernas, e, portanto, com mais dificuldade de crescer - este indivíduo sofre mais porque não se conhece e, portanto não sabe o que gosta e o que não gosta, tem dificuldade de aceitar o novo, perde oportunidades de aprendizado, é superficial em sua existência pois tem limites em sua capacidade de interiorizar-se.  Em suma, o indivíduo que não se conhece, erra muito. Mas ele recebe a todo momento oportunidades para conhecer a si e ao mundo, e só não as aproveita na medida em que mantém em sua personalidade, o orgulho e o egoísmo que embotam sua razão e o fazem cego para a realidade.

Quanto mais inconsciente, mais sofrimento.  O indivíduo consciente, por outro lado, compreende que está onde está porque necessita aprender certas lições, tem tolerância e paciência para aguardar a ordem dos acontecimentos, é calmo, tranquilo porque tem fé em Deus, conhece seus potenciais, avalia com critério suas limitações e faz acordo com elas - aproveita as oportunidades para crescer, tornar-se mais forte, mais resiliente; se passa por tribulações e necessidades compreende que tudo é uma questão de tempo e que nenhum sofrimento é eterno, que ele tem um propósito; quando ele o compreende o sofrimento cessa.  O indivíduo consciente constrói sua própria personalidade, sua identidade pessoal, sem necessidade de imitar outros, faz análises de si e do mundo com mais profundidade.  O indivíduo consciente erra menos; é um indivíduo mais prático, eficiente, vivaz, otimista, com grandes possibilidades de caminhar na vida com mais paz interior.  Sua própria autenticidade traz para si um mundo positivo, fazendo com que seu bem estar se espalhe por onde quer que esteja.

Bem, voltemos à nossa fábula - ela nos traz mais reflexões.

Quando admiramos uma pessoa por suas características positivas, existe uma tendência natural a imitá-la.  Isso é saudável, principalmente quando conhecemos o resultado positivo de tal imitação e, também quando incorporamos tal atitude à nossa personalidade.

Também é saudável quando tentamos esconder partes negativas de nossa personalidade, aquelas que ainda não conseguimos modificar.

Mas, quando em ambos os casos - imitação de atitudes e ocultação de nossas atitudes menos felizes - há um excesso dessas duas atitudes, esses processos psíquicos podem se tornar sintomas neuróticos e em casos extremos, indicam psicopatias (psicopatia: estado mental patológico caracterizado por desvios, sobretudo caracterológicos, que acarretam comportamentos antissociais).

De volta à nossa fábula, há homens com comportamentos semelhantes aos dos "gaios" - são indivíduos que vivem situações ilusórias, fantasiosas, vestindo-se com a peculiaridade dos outros e transformando-se total ou parcialmente, irrealisticamente, no modelo copiado.  Aqui o indivíduo vivencia o imaginário, e ao mesmo tempo, dissimula uma falta interna, de modo consciente ou não.  Quando o faz de maneira consciente é porque não aceita suas próprias características, talvez por "vergonha" (outra palavra, aceita socialmente para "orgulho") da mesma não causar impacto positivo nos demais.

Um dos grandes obstáculos ao crescimento é a ilusão.  Aqueles que esperam total aceitação de suas ideias na Terra, ou que pretendem agradar a tudo e a todos vivem numa ilusão.  Todos somos diferentes, em diferentes degraus de evolução, com ideias diferentes.

Hammed nos traz uma verdade incontestável - "só se vive de fato a partir da própria realidade". Por fora, pode-se até viver acomodando-se às circunstâncias, contemporizando com todos; mas, por dentro, só podemos escutar o Deus que há em nós.

Em psicologia, a árvore é o símbolo do homem.  Em muitos testes psicológicos, pede-se ao indivíduo que desenhe uma árvore e ele tem sua personalidade analisada de acordo com o desenho da árvore.

Hammed também traz à baila, a árvore como modelo de homem.  Embora as árvores sejam admiradas pela sua aparência exterior: caule, copa frondosa, folhagens verdejantes ou ramos mirrados, exuberância ou não das flores, fragrância suave ou aroma desagradável - sua importância maior está nos frutos - em sua serventia, em sua capacidade de produzi-los - e isso ocorre igualmente com o homem - "por seus frutos os conhecereis..."

Na vida, todos são importantes: os "gaios" e os "pavões" - cada um é chamado a trabalhar e cooperar de acordo com sua singularidade, suas características de personalidade.

Um indivíduo consciente, lúcido e desperto olhará para seu semelhante de maneira intensa - não analisará o outro pelo que o outro parece ser, olhando apenas a parte exterior; mas observará sua aparência interior - analisará sua capacidade de realização e colaboração no bem comum e analisará suas habilidades de expressão no âmbito social, algum propósito de que todos possam se beneficiar.

O indivíduo mais feliz é aquele que vive dentro da realidade, contentando-se com o que é, com o que tem, é aquele que tem consciência do que é no agora, no presente; é aquele que vive o hoje, sem idealizações e expectativas; é aquele que vive a partir de sua essência; que não se submete às convenções confusas do meio social.

Quando o indivíduo vive a partir de sua essência, atinge mais facilmente seus objetivos íntimos e cumpre melhor suas metas de vida.  Crenças negativas não nos permitem que desenvolvamos de maneira saudável nossa criatividade.

A vida de cada um de nós é singular - então todos nós temos uma vida valorosa e útil. Acredito que estamos aqui para viver experiências em direção à nossa felicidade e bem estar.  Basta nos autoconhecermos e fazermos as escolhas de acordo com esse conhecimento.

Boa semana!







 







 







  

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

NÃO FAÇA O QUE VOCE DETESTA

Caros amigos leitores,

A quinta regra do novo livro de Jordan Peterson "Além da Ordem - Mais Doze Regras para a Vida" trouxe-me muitas reflexões e lembranças do meu passado, onde eu era diferente em muitos aspectos do que sou hoje.  Creio que quando vamos atingindo certa idade podemos olhar para trás e perceber atitudes equivocadas e circunstâncias difíceis que vivemos, as quais nos ajudaram a amadurecer.  Essa regra "Não faça o que você detesta/odeia" me fez rever muitas coisas que realizei, mas que não gostei, ou até que odiava, mas o fiz por motivos diversos - revendo-as concluo que hoje não as repetiria.  Mas como eu já mencionei, elas me auxiliaram no meu crescimento.  E, hoje não sou mais a mesma pessoa, digo emocional, psicológica e até espiritualmente - amadureci e o que eu pensava sobre certas coisas no passado, hoje eu penso diferente.

A maioria de nós, vez ou outra, faz coisas de que não gosta.  Aqui não me refiro a tarefas do lar, por exemplo.  Mulheres em geral tem mais tendência a fazer o que não gostam - no lar - passar e lavar roupa, cozinhar, limpar a casa, etc.  Por exemplo, eu lavo e passo roupa com prazer, mas não curto cozinhar (meu marido é que cozinha), entretanto, algumas vezes preciso fazê-lo.  Com relação às tarefas do lar cada pessoa tem suas preferências.

Mas a regra de Peterson diz respeito à situações mais graves do que tarefas domésticas.  Ele se refere àquelas situações que enfrentamos e nos vemos fazendo coisas que trazem consequências funestas para nossa alma, e que nos arrependemos, mas que acabamos fazendo porque acreditávamos que era a única coisa a ser feita naquele momento.  E, depois de um tempo, colhemos o arrependimento e só nos livramos dele e da culpa se pudermos analisar e concluir que fizemos o que fizemos para ter um segundo ganho na ocasião.

A ideia aqui não é nos culparmos, mas nos perdoarmos e "prometermos" para nós mesmos que não iremos repetir a dose no futuro.  Quanto maior o arrependimento, mas fácil não repetir o comportamento.

Jordan Peterson trouxe um exemplo bizarro - tentarei resumi-lo.

A situação ocorreu com uma de suas pacientes (ele pediu licença à ela para reproduzir a história em seu livro) numa ocorrência em seu trabalho.  Ela trabalhava numa empresa, na parte administrativa e ela ia apresentar, numa reunião, o seu projeto.  Ela resolveu usar um flip-chart (bloco de papel com cavalete onde se viram as páginas já escritas) ao invés do power point/data show do computador.  E então a situação difícil deu início.  Uma pessoa começou dizendo que não se deve usar o tal do flip-chart porque a palavra flip-chart tinha uma conotação preconceituosa.  (A palavra flip é uma menção à pessoa que nasceu nas Filipinas - filipino. Chart quer dizer bloco).  Nem sabia disso e Peterson também não soube dizer o motivo de se usar essa palavra para se referir a um bloco de papel.  Em suma, na empresa dessa sua paciente, começou uma discussão interminável sobre uso de certas palavras que deveria ser abolida.  Bem, conhecemos bem de perto essa temática - palavras como preto, negro, denegrir, escuro, pardo, japonês, chinês, etc...

Ela, que não acredita e nem segue o tal do "politicamente correto" (tampouco Peterson ou eu mesma), sentiu-se violentando a si própria, por ter que discutir algo tão superficial, perdendo um tempo precioso com pessoas agressivas em suas colocações e sentiu o desejo de pedir demissão da empresa.

Assim a regra "Não faça o que você detesta/odeia" encaixa-se aqui.  Ela não estava mais sentindo-se confortável de trabalhar num ambiente onde não poderia expressar-se livremente.

A pergunta que ela se faz e eu a endosso: "Este é um caso onde se deve dar um "basta"? Aonde iremos parar? Se uma pequena minoria de pessoas, hipoteticamente, achar algumas palavras de cunho ofensivo, o que faremos? Continuaremos a banir palavras infinitamente?"

Sua paciente desejava muito escapar da situação (quem não iria querer?).

"Esses tipos de discussões dão às pessoas um sentido superficial de se estar sendo bom, nobre, compassivo, caridoso e sábio.  Assim, se alguém discorda desses pontos de vista, como essa pessoa poderá juntar-se à discussão sem ser considerada racista, má, de visão estreita, rigorosa?"

Então, muitas ideias vieram à mente dela. Em realidade, ela precisava dizer "não" para essa situação mas outras ideias surgiram: 

"Eu posso ser despedida". Jordan concorda que essa é uma possibilidade, então  diz à ela para "se preparar para procurar outro local para trabalhar (ou para se preparar para falar com seu chefe com um argumento bem preparado e articulado).  Não se deve presumir que deixando seu emprego será necessariamente para pior." Muitas vezes, ao contrário, encontra-se uma função melhor em outra empresa.

"Tenho receio de mudar para outra empresa." Então Peterson reflete: "Claro que você tem medo, mas comparado com o quê? Prefere continuar num trabalho onde você se torna mais fraca, mais amarga e mais suscetível à pressão ou tirania com o passar dos anos?  Há poucas escolhas na vida onde não haja risco de nenhum lado e é sempre necessário comparar os riscos de continuar e os riscos de se mudar para outro local."

O exemplo da situação da paciente de Jordan Peterson parece banal, mas a impressão que fica é que na vida real, em algumas circunstâncias passamos por cima de situações que não nos fazem bem e não agimos, não refletimos porque achamos que não temos escolha.  Porém, sempre temos escolha.  O problema é que nos acomodamos a certas condições que não nos fazem bem e "fingimos" que está tudo bem.  Mas com o passar do tempo percebemos que estamos sofrendo naquela condição porque temos medo de mudar, de "virar a mesa".  O que não percebemos é que, exatamente, se mudarmos, daremos um impulso para frente e acabaremos nos deparando com uma situação prazerosa que nos auxiliará no nosso crescimento.  Às vezes, precisamos agir com coragem e determinação no resgate de nossa autoestima.  E quando conseguimos, voilà! - uma sensação de liberdade invade o nosso íntimo.

Assim, reflitamos sobre essa regra "Não faça o que você detesta/odeia."

Boa semana!












 

sábado, 13 de novembro de 2021

O BURRO QUE LEVAVA RELÍQUIAS

Caros leitores,

Hoje trago mais uma fábula. Ei-la:

"Um burro, carregando a estátua de um santo e outras relíquias, caminhava pelas ruas da cidade.  E por onde passava as pessoas entoavam hinos e queimavam incensos.  Paravam para vê-lo e fixavam em sua direção olhares de admiração.  Alguns até se ajoelhavam.

Imaginando que todas as honrarias eram para ele, o burro, cheio de orgulho, marchava soberbamente diante do povo.  E até fazia paradas estratégicas quando percebia que a multidão exultava.

Alguém que por ali passava, observando a pose do animal, adivinha o que lhe passa na cabeça e diz:

- Não sejas tolo, ó burro insano! Deixa de lado essa presunção! És pobre de cabeça? Não vês que as homenagens e as preces dos suplicantes são para o santo que carregas, e não para ti?

Quantos burros se imaginam adorados pelos homens!

Quantos magistrados que nada sabem são aplaudidos pela imponência da toga!"

Através da história, quando refletimos sobre a evolução do homem, pode-se facilmente concluir que a interação entre as pessoas facilita e promove o crescimento tanto pessoal e, portanto individual, quanto social, ou grupal.  Então refletimo-nos uns nos outros - através da observação do meio social é possível "adaptar-se" a ele para melhor convivência nele.  Coloco aspas em "adaptar-se" porque muitos podem concluir que basta agir como todo mundo para ser aceito, admirado e amado.  Mas sabemos que não é bem assim.  Reflitamos.

A cada dia, cada pessoa é trabalhada em sua psicologia, sua moral, seu eu pessoal.  Muitas qualidades positivas já se encontram em cada um bastando apenas realizar o autoconhecimento.  Outras qualidades positivas que não se encontram no seu íntimo são facilmente identificáveis no meio social por aqueles que realizam a observação acurada e refletem racionalmente em sua importância - estas outras características positivas podem ser imitadas, exercitadas, postas como atividades habituais no dia-a-dia de cada um.

Nessa empreitada, o indivíduo observa, olha, raciocina, analisa, copia, vê e é visto.  Cada pessoa serve de modelo para a outra, tanto positivo quanto negativo.  Assim como foi dito que observa, copia, também é observada e copiada - e este é o mundo das relações onde toda ação, palavra, gesto, atitude é expressa e é copiada.

Se todos estivessem no mesmo parâmetro de crescimento, de evolução, tudo pareceria muito simples - todos se analisariam, todos raciocinariam, todos refletiriam e o crescimento tornar-se-ia a meta consciente.  Mas, sabemos que há uma miríade de indivíduos inconscientes que não tem ideia do valor da vida, do motivo de estarem vivos, de estarem em determinado país, determinada cidade, determinada família, determinada condição física, etc.  A estes indivíduos, o meio social se apresenta de maneira diferente - só há análise para criticar o outro, não há autoanálise, o raciocínio está a serviço de ganhar vantagens e a reflexão é parcamente usada.

Bem, voltando à palavra "adaptar-se" podemos dizer que só o indivíduo inseguro, inconsciente de si e do mundo "adapta-se" quase que totalmente ao meio ambiente, copiando aquilo que ele considera mais vantajoso para sentir-se seguro dentro do grupo - como ele não realiza a autorreflexão, não sabe quem é, não conhece suas características negativas e positivas e assim vive em função do meio que ele acredita que lhe dará todas as coisas de que ele julga que necessita.

Toda essa introdução foi feita para chegarmos a falar sobre a fábula de hoje.

Para Hammed, o burro age como um vaidoso sem conteúdo interno. Acredita que todos olham para ele e o admiram, quando na realidade, admiram e olham para o que ele carrega - ou seja, olham para sua aparência externa.

O filósofo e matemática Blaise Pascal escreveu que "a vaidade é de tal forma inerente ao coração do homem que todo mundo quer ser admirado - mesmo eu, que assim escrevo, e você, que me lê". Conclui-se que ele disse que a vaidade é inata em todo homem.  Em parte isso pode ser verdade, por tudo o que foi explanado no início - o homem precisa de um modelo para seguir a vida e ele também é um modelo para outros.  Entretanto muitos homens preferem ser apenas modelos para outros.  Então nesse instante a vaidade aparece no cenário.

A linha que separa a modéstia da vaidade é tênue e é difícil saber se um indivíduo é vaidoso ou modesto, principalmente numa auto-observação.

Aquele que não conquistou valores próprios não possui asas para voar, parafraseando Hammed - então ele voa com asas falsas, próteses de asas ou até com asas de cera, iguais as que trouxeram a Ícaro a sua queda.  Ícaro também se considerava melhor do que na realidade era, achou que podia galgar os céus com suas asas de cera - mas o sol as derreteu para fazê-lo ver a sua própria realidade, trazendo-o ao mundo real, ao solo, de volta a Terra/terra.  Estes, que emprestam dos outros seus valores são os vaidosos.  Os homens modestos colocam suas habilidades e competências em uso com grande generosidade porque possuem valores próprios e possuem consciência de suas virtudes inatas.  Os vaidosos, como foi dito no início, não têm consciência de seu potencial e procuram-no no meio externo, ao invés de desenvolvê-lo dentro de si mesmos.

A modéstia é facilmente observada quando aquele que se exprime o faz de maneira simples, lúcida e sintética, ao passo que a vaidade aparece quando aquele que se exprime faz uso de discursos pomposos, arrogantes, às vezes herméticos, principalmente quando quer obter algo a qualquer custo.

Para o filósofo francês André Comte-Sponville, em seu livro Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, o ser "simples é aquele que não simula, que não presta atenção em si, na sua imagem, na sua reputação, que não calcula, que não tem artimanhas nem segredos, que não tem segundas intenções, programa, projeto..."

Em realidade, todos nós gostamos de atenção, de homenagens, agradecimentos, consideração.  Demonstrações de reconhecimento, agradecimento e afeição fazem bem a todos nós e são muito desejáveis.  Não há por que condená-las.

Mas, para o vaidoso, o aplauso é uma necessidade vital e não é vista como um desejo momentâneo frente a um fato merecido.

Há, então, homens como este burro que carregava relíquias - julgam-se melhores e superiores, não se enxergam, não percebem o equívoco de suas atitudes de arrogância.

Para finalizar esse texto, reporto-me ao mito de Narciso - personagem mitológico extremamente belo e vaidoso, Narciso se atira nas águas, apaixonado pela sua própria imagem refletida no lago.  Diz-se então que os narcisistas são visionários da própria imagem.  A psicologia adotou este mito para dizer que o narcisista identifica-se com a imagem autocriada, ou seja, ele não se "apaixona" por si próprio, ele se apaixona por aquela imagem, aquela personalidade que ele acredita que ele é, mas que necessariamente não é totalmente verdadeira.   Dessa maneira, pode-se concluir que o narcisista é um presunçoso, pois ignora o seu eu verdadeiro; assim com Narciso, os narcisistas  olham para seu reflexo no espelho e não para si mesmos.  Nesse intento, perdem a oportunidade de amadurecer, impedindo que sentimentos verdadeiros venham à tona e construam sua identidade pessoal.  O narcisista sustenta-se emocionalmente pelas aparências e não cultiva os dons divinos que lhe foram gratuitamente oferecidos.

Infelizmente, o narcisista, como não amadurece, jaz apenas como peça decorativa, ornamento camuflando o espaço ocioso de uma sala.  São seres estáticos, sem ação, estagnados na vida.

Aqui, o que entendo por gratuitamente é que cada um de nós tem dentro de si, uma bagagem de virtudes, de aptidões, de dons à nossa disposição a qualquer momento, desde que nos interiorizemos e busquemos o autoconhecimento, a autoanálise.  Essas conquistas veem à tona na medida em que amadurecemos.

Que todos possamos amadurecer paulatinamente.

Boa reflexão!

Até a semana que vem.











sexta-feira, 5 de novembro de 2021

"KUFUNGISISA"

Caros amigos leitores,

O texto de hoje versa sobre um TED Talk que me foi enviado por duas amigas.  Ele é de 2017.  A fala é de um psiquiatra da África, mais precisamente do Zimbabwe, da cidade de Harare (capital), chamado Dixon Chibanda.  Ele está apresentando esse TED na cidade de New Orleans, Louisiana.

O Zimbabwe é a antiga Rodésia do Sul, localizada no sul da África, com uma população de cerca de 16 milhões de habitantes (Wikipédia).

Ele apresenta seu programa para tratar da depressão.  O nome de sua palestra é "Por que eu treino avós para tratar depressão".  O título por si só já explica seu programa.

Em seu país, o Zimbabwe, existem apenas 12 psiquiatras para 14 milhões de pessoas no Zimbabwe ( o Wikipédia já informou que atualmente são 16 milhões de habitantes; lembrando sempre que sua fala é de 2017), sendo impossível tratar adequadamente a população com problemas de depressão.

Em 2016, a OMS(Organização Mundial da Saúde) afirmou que 300 milhões de pessoas sofrem de depressão (imaginemos isso hoje no pós-pandemia...); a cada 40 segundos alguém no planeta comete suicídio por sentir-se infeliz; acontece mais comumente em países de baixa renda; a causa de morte por suicídio acontece mais comumente na faixa dos 15 aos 29 anos; a depressão pode ocorrer por abuso, conflitos, violência, isolamento, solidão.  Assim, ele estima que 90% das pessoas no mundo com transtorno mental não terão tratamento, visto que há aproximadamente 1 psiquiatra/psicólogo para cada 1,5 milhão de pessoas.

Então, ele pensou em avós - elas existem aos montes, são pacientes, tolerantes (pelo menos a maioria), estão em todas as cidades, quase em todos os lugares - ele deu treinamento em terapia cognitiva comportamental a um grupo de avós interessadas em participar do programa.

A ideia é usar um banco de praça/parque para conversar com os pacientes interessados no tratamento.  Uma das coisas que as avós necessitavam era de um celular para receber os contatos (provavelmente um grupo de WhatsApp) e participar de uma rede para contatar a todos.

Ele formou seu primeiro grupo de avós terapeutas em 2006 e até aquela data (2017) já haviam grupos de avós em 70 comunidades.  Em 2015, trinta mil pessoas receberam o tratamento no "banco de terapia", numa média de 6 meses de tratamento para cada paciente.  Na época, esse programa já tinha sido expandido para o Malawi, Zanzibar (na África) e nos EUA (Nova York).

Em 2017 existiam 600 milhões de pessoas no mundo acima dos 65 anos (avós em potencial) e em 2050 estima-se que serão 1,5 bilhão que poderão formar a Rede Global de Avós.

Ele conclui que as avós, para esse tipo de tarefa, eram mais eficientes que os médicos.

O tratamento no "banco de terapia" consistia na avó "emprestar" o seu ouvido, sua empatia, sua paciência, tolerância para a pessoa em estado de depressão.  A avó perguntaria se a pessoa gostaria de compartilhar sua problemática com ela e assim, a conversa/terapia começava.

Embora esse TED seja antigo, ele me trouxe muitas reflexões.  A primeira reflexão que percebo é de como no mundo existem muitas pessoas com ideias incríveis para ajudar os outros.  Muitas vezes, países com muitas regras, leis, diretrizes, burocracia perdem tempo e recusam-se a ver soluções nas coisas simples.

No Brasil temos o CVV - Centro de Valorização da Vida que também realiza esse trabalho muito bem ao telefone, treinando pessoas de qualquer idade para participar na rede de ajuda para pessoas com depressão.

Acredito que a maioria dos suicídios poderiam ser evitados se todos nós, independente da idade, pudéssemos "emprestar" nossos ouvidos de vez em quando para pessoas que necessitam falar de sua mazelas.

Outra reflexão que me ocorre agora é de que o outro lado, o da pessoa com conflitos, problemas de tristeza, solidão, abuso também pudesse buscar ajuda de algum "ouvido" amigável.

No mundo atual todos nós precisamos ser ouvidos em nossas tribulações; mas também todos nós podemos ouvir irmãos em crise.

O que Dixon não mencionou, mas que fiquei imaginando que fosse real é que as avós também tiveram seu grau de satisfação, contentamento de poderem sentir-se, mais uma vez, úteis (muitas avós não se sentem assim) e poderem ajudar alguém.  Ajudar outra pessoa com problemas, mesmo que não se possa resolvê-los, só pelo fato de ouvir o outro, não tem preço. Quem já fez isso sabe do que falo.

Ah, já ía me esquecendo.  "Kufungisisa", no Zimbabwe é equivalente à depressão e significa literalmente "pensar demais" - e, na minha opinião,  é exatamente o que uma pessoa depressiva faz: pensa muito e age pouco.

Boa reflexão!


 




 

VISITA A SÃO PAULO

Caros leitores, Este ano, em nossa ida para Sampa para visitar amigos que lá deixamos, visitamos 15 pessoas.  O ano passado ficamos 6 dias e...