sábado, 13 de novembro de 2021

O BURRO QUE LEVAVA RELÍQUIAS

Caros leitores,

Hoje trago mais uma fábula. Ei-la:

"Um burro, carregando a estátua de um santo e outras relíquias, caminhava pelas ruas da cidade.  E por onde passava as pessoas entoavam hinos e queimavam incensos.  Paravam para vê-lo e fixavam em sua direção olhares de admiração.  Alguns até se ajoelhavam.

Imaginando que todas as honrarias eram para ele, o burro, cheio de orgulho, marchava soberbamente diante do povo.  E até fazia paradas estratégicas quando percebia que a multidão exultava.

Alguém que por ali passava, observando a pose do animal, adivinha o que lhe passa na cabeça e diz:

- Não sejas tolo, ó burro insano! Deixa de lado essa presunção! És pobre de cabeça? Não vês que as homenagens e as preces dos suplicantes são para o santo que carregas, e não para ti?

Quantos burros se imaginam adorados pelos homens!

Quantos magistrados que nada sabem são aplaudidos pela imponência da toga!"

Através da história, quando refletimos sobre a evolução do homem, pode-se facilmente concluir que a interação entre as pessoas facilita e promove o crescimento tanto pessoal e, portanto individual, quanto social, ou grupal.  Então refletimo-nos uns nos outros - através da observação do meio social é possível "adaptar-se" a ele para melhor convivência nele.  Coloco aspas em "adaptar-se" porque muitos podem concluir que basta agir como todo mundo para ser aceito, admirado e amado.  Mas sabemos que não é bem assim.  Reflitamos.

A cada dia, cada pessoa é trabalhada em sua psicologia, sua moral, seu eu pessoal.  Muitas qualidades positivas já se encontram em cada um bastando apenas realizar o autoconhecimento.  Outras qualidades positivas que não se encontram no seu íntimo são facilmente identificáveis no meio social por aqueles que realizam a observação acurada e refletem racionalmente em sua importância - estas outras características positivas podem ser imitadas, exercitadas, postas como atividades habituais no dia-a-dia de cada um.

Nessa empreitada, o indivíduo observa, olha, raciocina, analisa, copia, vê e é visto.  Cada pessoa serve de modelo para a outra, tanto positivo quanto negativo.  Assim como foi dito que observa, copia, também é observada e copiada - e este é o mundo das relações onde toda ação, palavra, gesto, atitude é expressa e é copiada.

Se todos estivessem no mesmo parâmetro de crescimento, de evolução, tudo pareceria muito simples - todos se analisariam, todos raciocinariam, todos refletiriam e o crescimento tornar-se-ia a meta consciente.  Mas, sabemos que há uma miríade de indivíduos inconscientes que não tem ideia do valor da vida, do motivo de estarem vivos, de estarem em determinado país, determinada cidade, determinada família, determinada condição física, etc.  A estes indivíduos, o meio social se apresenta de maneira diferente - só há análise para criticar o outro, não há autoanálise, o raciocínio está a serviço de ganhar vantagens e a reflexão é parcamente usada.

Bem, voltando à palavra "adaptar-se" podemos dizer que só o indivíduo inseguro, inconsciente de si e do mundo "adapta-se" quase que totalmente ao meio ambiente, copiando aquilo que ele considera mais vantajoso para sentir-se seguro dentro do grupo - como ele não realiza a autorreflexão, não sabe quem é, não conhece suas características negativas e positivas e assim vive em função do meio que ele acredita que lhe dará todas as coisas de que ele julga que necessita.

Toda essa introdução foi feita para chegarmos a falar sobre a fábula de hoje.

Para Hammed, o burro age como um vaidoso sem conteúdo interno. Acredita que todos olham para ele e o admiram, quando na realidade, admiram e olham para o que ele carrega - ou seja, olham para sua aparência externa.

O filósofo e matemática Blaise Pascal escreveu que "a vaidade é de tal forma inerente ao coração do homem que todo mundo quer ser admirado - mesmo eu, que assim escrevo, e você, que me lê". Conclui-se que ele disse que a vaidade é inata em todo homem.  Em parte isso pode ser verdade, por tudo o que foi explanado no início - o homem precisa de um modelo para seguir a vida e ele também é um modelo para outros.  Entretanto muitos homens preferem ser apenas modelos para outros.  Então nesse instante a vaidade aparece no cenário.

A linha que separa a modéstia da vaidade é tênue e é difícil saber se um indivíduo é vaidoso ou modesto, principalmente numa auto-observação.

Aquele que não conquistou valores próprios não possui asas para voar, parafraseando Hammed - então ele voa com asas falsas, próteses de asas ou até com asas de cera, iguais as que trouxeram a Ícaro a sua queda.  Ícaro também se considerava melhor do que na realidade era, achou que podia galgar os céus com suas asas de cera - mas o sol as derreteu para fazê-lo ver a sua própria realidade, trazendo-o ao mundo real, ao solo, de volta a Terra/terra.  Estes, que emprestam dos outros seus valores são os vaidosos.  Os homens modestos colocam suas habilidades e competências em uso com grande generosidade porque possuem valores próprios e possuem consciência de suas virtudes inatas.  Os vaidosos, como foi dito no início, não têm consciência de seu potencial e procuram-no no meio externo, ao invés de desenvolvê-lo dentro de si mesmos.

A modéstia é facilmente observada quando aquele que se exprime o faz de maneira simples, lúcida e sintética, ao passo que a vaidade aparece quando aquele que se exprime faz uso de discursos pomposos, arrogantes, às vezes herméticos, principalmente quando quer obter algo a qualquer custo.

Para o filósofo francês André Comte-Sponville, em seu livro Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, o ser "simples é aquele que não simula, que não presta atenção em si, na sua imagem, na sua reputação, que não calcula, que não tem artimanhas nem segredos, que não tem segundas intenções, programa, projeto..."

Em realidade, todos nós gostamos de atenção, de homenagens, agradecimentos, consideração.  Demonstrações de reconhecimento, agradecimento e afeição fazem bem a todos nós e são muito desejáveis.  Não há por que condená-las.

Mas, para o vaidoso, o aplauso é uma necessidade vital e não é vista como um desejo momentâneo frente a um fato merecido.

Há, então, homens como este burro que carregava relíquias - julgam-se melhores e superiores, não se enxergam, não percebem o equívoco de suas atitudes de arrogância.

Para finalizar esse texto, reporto-me ao mito de Narciso - personagem mitológico extremamente belo e vaidoso, Narciso se atira nas águas, apaixonado pela sua própria imagem refletida no lago.  Diz-se então que os narcisistas são visionários da própria imagem.  A psicologia adotou este mito para dizer que o narcisista identifica-se com a imagem autocriada, ou seja, ele não se "apaixona" por si próprio, ele se apaixona por aquela imagem, aquela personalidade que ele acredita que ele é, mas que necessariamente não é totalmente verdadeira.   Dessa maneira, pode-se concluir que o narcisista é um presunçoso, pois ignora o seu eu verdadeiro; assim com Narciso, os narcisistas  olham para seu reflexo no espelho e não para si mesmos.  Nesse intento, perdem a oportunidade de amadurecer, impedindo que sentimentos verdadeiros venham à tona e construam sua identidade pessoal.  O narcisista sustenta-se emocionalmente pelas aparências e não cultiva os dons divinos que lhe foram gratuitamente oferecidos.

Infelizmente, o narcisista, como não amadurece, jaz apenas como peça decorativa, ornamento camuflando o espaço ocioso de uma sala.  São seres estáticos, sem ação, estagnados na vida.

Aqui, o que entendo por gratuitamente é que cada um de nós tem dentro de si, uma bagagem de virtudes, de aptidões, de dons à nossa disposição a qualquer momento, desde que nos interiorizemos e busquemos o autoconhecimento, a autoanálise.  Essas conquistas veem à tona na medida em que amadurecemos.

Que todos possamos amadurecer paulatinamente.

Boa reflexão!

Até a semana que vem.











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